Abertura do Concerto Anos 20
Texto de Abertura do Espetáculo
Boa Noite
Muito Boa noite!
A década de 20 do século passado foi uma época de liberdade, magia e ilusão… Os loucos anos 20 foram anos de grandes transformações na moda, nas artes, e nas formas de sociabilidade.
Os corpos masculinos imitavam a compleição física das estátuas dos atletas gregos e os corpos femininos abandonavam os corpetes e espartilhos, mas tornavam-se escravos da beleza de Hollywood.
Nesta década duas cidades disputam o lugar de capital da movida, da vanguarda, da audácia: Paris e Nova Iorque. Se Nova Iorque representa o sonho americano, em Paris desembarcavam artistas, escritores, pintores, aristocratas sem reino, ricos ociosos. Em 1924, André Breton publicou o Manifesto Surrealista que vai agitar toda a arte durante décadas e, no final desses anos, Gabrielle Chanel lançou o famoso Chanel n.º 5, provavelmente o perfume mais famoso de sempre.
A década de 20 será também a década do som: o telefone, a rádio, o gramofone tornam-se acessíveis, o cinema ganha vozes e o mundo passa a estar ligado entre si.
Em Portugal, o grande momento modernista tinha-se dado na década anterior com a revista Orfeu. Na capital Fernando Nogueira Pessoa conhece Ofélia, mas continuará melancólico e deprimido.
APONTAMENTO
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que eu era um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.
A revista Presença lidera o segundo modernismo, mas a grande novidade era a rádio e as novelas radiofónicas que faziam a delícia do país. Ao mesmo tempo, a poesia, o escândalo de Florbela Espanca, o fascínio pela moda de Paris, eram as novidades conhecidas através dos magazines ilustrados e dos cinemas.
A recriação dos anos 20 que hoje estamos a vivenciar surgiu de um desafio do maestro Paulo Carvalho, professor do Conservatório de Música do Porto. Hoje o que
era quimera materializou-se...com a atuação do Grupo de Câmara.
Porém, para iniciar o espetáculo, teremos dois números com declamação de poesia de autores dos anos 20. O primeiro poema “O Recreio”, de Mário de Sá Carneiro, será apresentado pelo aluno João Dinis…
Seguidamente, porque somos uma escola plural e multicultural, os alunos Eduardo Simplício de Souza e Rafael Pereira (de origem brasileira) irão apresentar dois
poemas de Manuel Bandeira intitulados "Testamento" e “Anel de Vidro". Posteriormente, o aluno Sebastian Gonzalez Burgues (que é argentino) irá dizer o
poema "Los Amigos", de Julio Cortázar e o aluno Julian David Rosero (que é colombiano) apresentará "La oración de los bostezadores" de Luis Vidales.
Palmas para eles.
O Conservatório de Música do Porto (CMP) é uma escola pública do Ensino Artístico Especializado da Música e uma instituição com um significativo impacto, garantindo uma presença destacada na vida cultural de toda a região. Assim, vamos assistir à tão esperada atuação do Grupo de Câmara do Conservatório de Música do Porto com músicas dos anos 20.
Um forte aplauso.
Finalizamos este espetáculo com a apresentação do poema “Cântico Negro”, de José Régio, pelos “Diseurs” da Escola Secundária de Águas Santas. Palmas para eles.
Agradecemos a vossa presença. Esperemos que este serão seja do vosso agrado.
Desejamos a todos um bom espetáculo!
O Recreio, Mário de Sá Carneiro
Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...
--- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
--- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
--- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
Testamento, Manuel Bandeira
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezai: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino.
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
O Anel de Vidro, Manuel Bandeira
Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou...
Assim também o eterno amor que prometeste,
— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou —
Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou...
Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo na alma a saudade celeste...
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste...
Los Amigos, Julio Cortázar
En el tabaco, en el café, en el vino,
al borde de la noche se levantan
como esas voces que a lo lejos cantan
sin que se sepa qué, por el camino.
Livianamente hermanos del destino,
dióscuros, sombras pálidas, me espantan
las moscas de los hábitos, me aguantan
que siga a flote entre tanto remolino.
Los muertos hablan más pero al oído,
y los vivos son mano tibia y techo,
suma de lo ganado y lo perdido.
Así un día en la barca de la sombra,
de tanta ausencia abrigará mi pecho
esta antigua ternura que los nombra.
La Oración de los Bostezadores, Luis Vidales
Señor.
Estamos cansados de tus días
y tus noches.
Tu luz es demasiado barata
y se va con lamentable frecuencia.
Los mundos nocturnales
producen un pésimo alumbrado
y en nuestros pueblos
nos hemos visto precisados a sembrarle a la noche
un cosmos de globitas eléctricas.
Señor.
Nos aburren tus auroras
y nos tienen fastidiados
tus escandalosos crepúsculos.
¿Por qué un mismo espectáculo todos los días
desde que le diste cuerda al mundo?
Señor.
Deja que ahora
el mundo gire al revés
para que las tardes sean por la mañana
y las mañanas sean por la tarde.
O por lo menos
—Señor—
si no puedes complacemos
entonces
—Señor—
te suplicamos todos los bostezadores
que transfieras tus crepúsculos
para las 12 del día.
Amén.